Capa texto MM

POR UMA GEOGRAFIA DO ESPERANÇAR!

Marcelo Rodrigues Mendonça

Se alguém, ao ler esse texto, me perguntar,

 com irônico sorriso, se acho que, para mudar o

 Brasil, basta que nos entreguemos ao cansaço de

 constantemente afirmar que mudar é possível e

 que os seres humanos não são puros expectadores,

 mas atores também da história, direi que não. Mas

 direi também que mudar implica saber que fazê-lo é possível.

 Paulo Freire (2000).

 

 

 

Inicio essa prosa reivindicando a importância da Geografia e, isso indica, que essa disciplina do conhecimento científico vem sendo destruída ao longo das últimas décadas, precisamente, nos últimos anos com as reformas no ensino, promovidas pelo Ministério da Educação e Cultura/MEC. Não é de agora os ataques às licenciaturas, destacadamente, a Geografia, que dentre as suas finalidades, possui a precípua função de formar Professores.

A Geografia é ciência social e possui duas modalidades que interargem no processo de formação do professor: constituída pela Licenciatura e pelo Bacharelado. Os licenciados tornar-se-ão aptos a ministrar aulas na disciplina de Geografia no ensino fundamental e médio, necessitando de especialização, mestrado e/ou doutorado para lecionar nas Universidades. Já os bacharéis poderão se associar ao CREA (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia) e exercer atividades de elaboração de pareceres técnicos em diversos campos, como planejamento urbano, regional, ambiental, estudo de impactos socioambientais, efeitos territoriais de grandes empreendimentos, prioritariamente, produzindo conhecimentos geográficos, àquela maioria, que sofre as consequências danosas da ausência das políticas públicas territoriais, de leituras cartográficas, do geoprocessamento e demais avanços tecnológicos tão necessários, porém, pouco utilizados na gestão territorial brasileira.

Em reportagem realizada pelo Jornal Diário da Manhã e reproduzida no site da UFG[1] diz que: “A geografia é considerada como umas das disciplinas mais antigas, já foi chamada de história natural na antiga Grécia, posteriormente foi herdada pelos árabes e a partir do século XV passou a ser mais utilizada, mas somente no século XIX passa a ser reconhecida como ciência, sendo ensinada e praticada nas universidades europeias [...]. No Brasil a profissão dos geógrafos começou a partir dos anos 1930 e 1940 quando foram criados o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e o IGH – Instituto Geográfico e Cartográfico. Com o surgimento da AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros, em 1934 iniciam os cursos de Geografia na Faculdade de Ciências e Letras da USP. No entanto somente em 1979 através da lei nº. 666/79, é que foi regulamentada a profissão de géografo”.

A matéria no site apresenta incorreções, todavia aqui não é o espaço para discorrer sobre isso. O que de fato quer-se destacar é a relevância da Geografia e sua importância na constituição do território brasileiro e suas diversas formações socioespaciais. Isso, baseado na historicidade espacial e na formação das classes sociais, compreendidas no contexto dos processos de apropriação espacial e produção dos territórios, fundidos aos interesses do Estado, viabilizador das reformas necessárias à territorialização das grandes empresas agroindustriais, mineradoras, financeiras mundializadas.

Noutra matéria veiculada no jornal O Estado de Minas, em 29 de maio de 2018, dia do Geógrafx, há 04 anos, denunciava que o déficit de professores de Geografia: “Segundo dados do Ministério da Educação, o Brasil precisaria de cerca de 17 mil docentes dessa área para suprir o déficit. Existe uma carência de professores para a educação básica em todas as regiões do país, principalmente em cidades mais afastadas dos grandes centros urbanos”.

Porque faltam tantos Professores de Geografia? Salários baixos, precárias condições de trabalho contribuem para isso, mas a questão central está na ausência planejada de concursos públicos e na desvalorização das Licenciaturas. Criou-se no imaginário popular a ideia de que ser Professor é uma coisa ruim e que a escola pública não serve para nada. Isso, inclusive atingiu, fortemente, o imaginário das classes trabalhadoras que se sacrificam para pagar mensalidades em escolas particulares. É o discurso de austeridade fiscal e, para isso, há que enfraquecer o Estado em áreas prioritárias que atendam os mais pobres (educação, saúde), não realizando os concursos públicos e ampliando os contratos temporários para conter gastos e atender o clientelismo político.

Já em 2022, apenas em Goiás, levantamento realizado pelo Observatório do Estado Social Brasileiro da Universidade Federal de Goiás (UFG) e do Observatório da Educação constatou que o déficit de professores na Rede Estadual de Ensino de Goiás é de 8.750 profissionais. Se somado aos técnicos administrativos chega-se ao déficit de 16.346 profissionais que exercem atividades na educação estadual.

Desse estudo resultou o Relatório Estudos Conjunturais – Déficit de profissionais na Rede Pública Estadual de Goiás[2], publicado em abril de 2022, em que a disciplina Geografia possui na rede pública estadual, do total de 1.533 profissionais, 1.025 são efetivos e 504 professores são contratados, perfazendo 32,88% de trabalhadores precarizados. Noutras disciplinas esse percentual é semelhante, já que, é um projeto estatal. Dos 22.368 professores goianos, 12.356 são efetivos e 10.012 são professores contratados, perfazendo 44,76% do total. O Relatório apresenta recomendações necessárias, cobrando dos espaços formativos, como a Universidade, uma posição política diante do cenário identificado.

Então, além desse desmonte estrutural viabilizado pelo Estado, o que sustenta a apatia da sociedade brasileira, inclusive dos educadores, diante da tendência de destruição da nossa carreira profissional? O que mais interfere na desvalorização dos conhecimentos geográficos e dos profissionais da Geografia?

Tornou-se senso comum destruir as contribuições da Ciência e aqui, especificamente, da Geografia (terraplanistas), percebe-se que a narrativa predominante é a de que a Ciência é ideológica e forma “esquerdopatas”, sendo as universidades públicas antro de maconheiros[3], erotização e devaneios diversos. No artigo citado, o autor destaca o pronunciamento do Ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, sendo parte de entrevista concedida ao Jornal da Cidade Online em novembro de 2019. “As convocações feitas pela oposição é [sic] para discutir droga. E as drogas estão amplamente difundidas no Brasil. É o que a gente viu nas estatísticas: nas universidades é o dobro. Metade usa drogas. É por isso que eles plantam maconha, porque a demanda é tão grande, é tão natural, que eles plantam maconha”.

No mesmo artigo um contraponto é apresentado, pois a distorção proposital das “informações oficiais” com o objetivo de infundir na sociedade brasileira a destruição das Universidades Públicas e, consequentemente, a satanização dos pesquisadores, professores e da educação pública como um todo, fez recair sobre nós, uma responsabilidade histórica – a necessária defesa da Educação Pública – que é e deve ser responsabilidade do Estado e de toda a sociedade brasileira. Todavia, no atual governo, em que a sociedade se dividiu entre os protofascistas/autoritários no poder e os progressistas/democratas, falar de direitos humanos (sociais, ambientais, educacionais, coletivos) tornou-se coisa de comunista.

Serg Smigg, salienta critérios de avaliação no exterior para contrapor as informações falseadas do Ex-ministro da Educação. “Em contrapartida, gestores da Universidade de Leidein, na cidade de Leida, sul da Holanda, divulgaram recentemente seu estudo anual sobre o desempenho das universidades pelo mundo. Trata-se de rankeamento das principais instituições acadêmicas. O método usado envolve vários ângulos de análises, mas é a quantidade de publicações científicas de cada uma delas que denota peso maior. O evento mais recente catalogou artigos publicados entre 2014 e 2017 para compor o anuário de 2019. [...]. Nesse universo analítico, 23 universidades brasileiras alcançaram a difícil marca. Uma característica interessante a ser destacada nesse grupo é que todas elas são públicas. Ou seja, o âmbito de ensino (público) duramente criticado por três autoridades brasileiras: o próprio presidente e dois de seus ministros [...].

Já recentemente, as denúncias tomaram as páginas da imprensa e mídias diversas que culminaram na queda do terceiro Ministro da Educação e Cultura, apenas na atual gestão. A constatação: pastores, tinham livre acesso ao MEC e cobravam propinas em troca de liberação de recursos para as escolas públicas. O áudio obtido pelo Jornal Folha de São Paulo[4] diz que: “o ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirmou em reunião com prefeitos que repassa verbas para municípios indicados por dois pastores, a pedido do presidente Jair Bolsonaro”.

Mas, no meu entendimento, ainda tem mais coisas debaixo desse angu que explica a ojeriza às Licenciaturas e em especial a Geografia – uma Ciência Social – que busca transformar com os sujeitos reais, estudantes e a sociedade circundante, as realidades geográficas que oprimem e reproduzem a opressão espacial; e, estes, sujeitos reais, cientes da sua condição de sujeitos políticos, denunciam e se contrapõem aos discursos e as narrativas hegemônicas.

É isso que incomoda os latifundiários, os empresários rurais agronegocistas, as empresas transnacionais que sustentam o modelo do agrohidronegócio, da mineração, da devastação dos Cerrados e das Amazônias e outros biomas no Brasil, como a única forma de produção no campo brasileiro. Se a Geografia continuasse em “berço esplêndido”, certamente, não seria preocupação na agenda política do Estado brasileiro.

Setores das classes hegemônicas, quando denunciados pelas atrocidades socioambientais e econômicas produzidas, sentem-se afrontados. Quando se questiona que a maioria do agronegócio não produz comida e, sim, commodities e que embora o Brasil tenha recordes de produção de grãos/carnes, tem-se mais de 33 milhões de pessoas[5] famintas e mais de 100 milhões (58,7% da população) de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar, isso fere, brutalmente, a natureza do modelo implantado às custas de recursos públicos. Então se produz para quem?

A Geografia também tem denunciado, insistentemente, diversos processos espoliativos em grandes obras – e, isso, também incomoda. Não apenas no ensino, mas no trabalho técnico, há muitos geógrafxs, incomodando, em audiências públicas e na elaboração de pareceres técnicos que questionam os grandes empreendimentos governamentais/privados e seus efeitos territoriais. Sabe-se que não é a maioria, mas a posição política dos profissionais da Geografia não deixa de representar uma força questionadora.

Preocupados, as frações da classe hegemônica brasileira, pressionam o Estado a tomar as medidas de contenção através de reformas na legislação trabalhista, previdenciária, ambiental etc., e/ou a criação de novas leis que contemplem os seus interesses e facilitem sua atuação, criminalizando todxs aquelxs que não concordam com o atual governo como oposição que não quer o progresso do país.

E a Geografia com isso?

A Geografia tem (des)velado, literalmente, os véus que (em)cobrem as realidades geográficas. Ao retirá-los, (des)cobrem-se as intencionalidades e ações que promovem os efeitos territoriais para as populações tradicionais (indígenas, quilombolas, camponesas), para as populações periféricas das áreas urbanas (pobres, pretas), enfim, a maioria da sociedade brasileira. Parece que o “rei está nu”.

E agora?

Quer-se o fortalecimento e, mais do que nunca, isso é uma necessidade, embora contra a correnteza, nesses tempos bicudos, de uma Geografia Ativa e com sentidos para a formação dos educadores e, principalmente, assegurando uma intervenção qualificada na sociedade brasileira.

Mas aqui se coloca um divisor de águas: a quem deve servir essa Ciência? O processo de apropriação do espaço geográfico (realidade geográfica material e imaterial) se faz a partir das relações de poder (empresas, Estado, trabalhadores), e, portanto, o espaço geográfico apresenta as diferenças naturais que lhe são próprias, conforme, a constituição natural histórica do planeta Terra, mas também, as desigualdades sociais, econômicas – produzidas pela sociedade de classes.

As desigualdades sociais e econômicas tomam forma espacial, seja no campo, seja nas cidades com bairros luxuosos ao lado de áreas de ocupação irregular, denominadas de favelas. Historicamente, a Geografia serviu aos interesses dos poderosos de cada tempo, aliados aos interesses do poder político, sequestrado pelo poder econômico. Isso continua em alguma medida, mas mudou muito e essa mudança, como dito anteriormente, incomoda.

Em todos esses tempos, houve quem contestasse e criticasse essa servidão geográfica e para lembrar alguns, desde meados do século XIX (Élisée Reclus, Piort Kropotkin) e, a partir dos fins dos anos 1970, com o Movimento de Renovação na Geografia Brasileira – Geografia Crítica – com uma diversidade de geógrafxs, com destaque para a obra de Milton Santos.

E mais recentemente uma plêiade de geógrafxs, Brasil afora, se coloca como protagonistas e, isso incomoda, sobremaneira, os detentores das lógicas de produção e reprodução espacial e, por isso, uma série de ataques e tentativas de desmonte da Geografia Brasileira, mas também, das Licenciaturas, das Universidades Públicas e da própria Ciência, como já enunciado.

Então, a quem deve servir a Geografia?

Nos idos da década de 1970, Yves Lacoste, iminente geógrafo francês dizia que “a Geografia serve antes de mais nada para fazer a guerra” e revelou a face oculta da Geografia, qual seja, o seu papel político escondido, mas a serviço do Estado e dos interesses das grandes empresas transnacionais numa lógica de fortalecimento do patriotismo e da suposta “soberania nacional”.

Isso não era novo, mas toma forma concreta de denúncia e começa a chegar aos espaços escolares, desnudando e explicando os processos de apropriação dos bens naturais (terra, água, energia, minérios etc.) e a produção da riqueza social pelos trabalhadores, mas, contraditoriamente, a concentração da renda e da riqueza nas mãos de uma minoria, enquanto a miséria, a fome e os problemas sociais agrava(vam) a vida de milhões, mundo afora.

Do que precisamos? De uma Geografia Crítica, propositiva e com capacidade de Esperançar, ou seja, de assegurar uma intervenção diferenciada na sociedade, buscando transformá-la, conforme os interesses da maioria da sociedade brasileira. Todavia, isso incomoda. E incomoda muita gente. Mas é essa Geografia construída, coletivamente, associando ensino com a pesquisa e com as atividades de extensão e cultura, traduzindo a realidade social dos estudantes e, estes, ao conhecê-la, possam ter os instrumentos técnicos, científicos, políticos para realizar as transformações que decidirem serem necessárias. Que a Geografia seja o Esperançar e a construção cotidiana da democracia, da justiça social, econômica, ambiental.

 

Marcelo Rodrigues Mendonça

Professor Associado do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás. Líder do Grupo de Pesquisa Trabalho, Território e Políticas Públicas - TRAPPU/LABOTER/IESA/UFG/CNPq.

marcelomendonca@ufg.br  

 

 

[1] Para que serve a Geografia? Disponível em: https://secom.ufg.br/n/46696-para-que-serve-a-geografia

[2] Relatório ESTUDOS CONJUNTURAIS – Déficit de profissionais na Rede Pública Estadual de Goiás. Disponível em: https://obsestadosocial.com.br/documentos/estudos-conjunturais-deficit-de-profissionais-da-educacao-na-rede-publica-estadual-de-goias/

[3] Universidades públicas: fonte de grandes mentes ou antro de maconheiros? Disponível em: https://prensa.li/@serg.smigg/universidades-publicas-fonte-de-grandes-mentes-ou-antro-de-maconheiros/

[4] Ministro da Educação diz em áudio que, a pedido de Bolsonaro, repassa verba a municípios indicados por pastores. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/03/22/ministro-diz-em-audio-que-a-pedido-de-bolsonaro-repassa-verba-a-municipios-indicados-por-pastores.ghtml

[5] Dados da OXFAM Brasil. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/especiais/olhe-para-a-fome-2022/?utm_campaign=download&utm_id=fome&utm_medium=botao&utm_source=emailmkt

 

 

Ficha bibliográfica:

MENDONÇA, Marcelo Rodrigues. Por uma geografia do esperançar! Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, vol. 12, n.14, 26 de junho de 2022. [ISSN 22380-5525].

Categorias: territorial