BIOGEOGRAFIA E O FENÔMENO DAS PANDEMIAS: ANAMNESE ACERCA DO CONTEXTO ATUAL
Fernando Edson de Abreu Ramos e Rafaela dos Santos Leal
INTRODUÇÃO
O texto traz a discussão sobre o fenômeno das pandemias, que vem sendo registrado na história das sociedades humanas basicamente desde a antiga civilização egípcia, quando em 430 a. C, a Febre tifoide “castigou” aquela sociedade, até então sob o domínio grego, na verdade a esse evento dar-se o nome de epidemia, pois limitou se apenas a região do atual Egito. Além de surtos de Peste negra, Tifo e Cólera na Europa medieval, em meio às “cruzadas”, e início da idade moderna, século das “luzes”.
No entanto, na história humana há registros de epidemias de doenças infecciosas que se espalharam por um continente ou mais, chegando ao caso de configurar-se em um quadro de Pandemia. Ou seja, abrangendo um continente ou o mundo todo. Nesse contexto, podemos citar Sellwood (2010) a primeira pandemia que se tem registrada na história humana, foi uma gripe que se iniciou na Ásia em 1580, em meio ao período dos grandes “descobrimentos” e exaustivas navegações, logo se espalhou pela Europa, África e América do Norte.
A partir deste momento podemos falar na gripe asiática, durante o período de 1889 a 1892 que espalhou se rapidamente e atingiu a América do Norte e do Sul, além de Índia e Austrália, a enfermidade era causada por um subtipo do vírus influenza (BEVERIDGE, 1977). Mas, levando-se em consideração o espaço de abrangência e a letalidade da infecção, podemos dizer que foi a gripe “espanhola” durante os anos de 1918 a 1919, que se tornou uma Pandemia mundial, com alta letalidade. Lembrando que uma Pandemia não se caracteriza pelo seu grau de letalidade, mas sim pela dimensão espacial e forma de transmissão, “contágio pessoal, transmissão sustentável”.
O fenômeno narrado é visto até hoje como a maior da história, calcula-se que 17 milhões de mortes na índia, 500.000 nos Estados Unidos e 200.000 no Reino Unido, são os maiores saldos negativos por nação, e no total da pandemia estima-se que 25 milhões de vidas tenha sido o saldo final desse evento meteórico (DOMINGOS; WEBSTER; HOLAND, 1999).
Nas reflexões elaboradas propomos pensar sob a luz da Biogeografia, nesse sentido esse ensaio tem a preocupação de explicar alguns conceitos e categorias de análise desse ramo de estudo, a fim de que possamos compreender as razões pelas quais as Pandemias podem se efetivar no espaço mundial.
A produção do texto foi motivada pelo contexto histórico atual, afinal estamos assistindo a efetivação do expansionismo da doença Covid-19, em todos os continentes do planeta. A enfermidade é caracterizada por apresentar sintomas semelhantes a uma gripe, causando a Síndrome Respiratória Aguda (SARS) em seus casos mais graves. Tendo como objetivo geral do ensaio fazer uma reflexão da Pandemia atual (Covid-19) a luz dos fundamentos teóricos da Biogeografia.
Os primeiros casos observados de Covid-19 foram registrados na China. Segundo Lemos (2020) o novo coronavírus que causa a infeção Covid-19, surgiu em 2019 na cidade de Wuhan na China e acredita-se que os primeiros casos de infecção, tenham acontecido de animais para pessoas. Além disso, os primeiros casos da doença foram confirmados num grupo de pessoas que estiveram no mesmo mercado popular da cidade de Wuhan, onde eram vendidos vários tipos de animais selvagens vivos, como cobras, morcegos e castores, fato que reforça a hipótese de que a transmissão tenha se iniciado dos animais para o homem.
O AFLORAMENTO DAS REMINISCÊNCIAS
Sobre o planeta Terra
Ao iniciar o assunto temos de reafirmar que o planeta Terra é um Geoide, e por tanto apenas partes do astro Terra poderia ser transposta para a forma plana, e mesmo assim, somente se isso o fosse feito para fins de representação cartográfica, logo a Terra só seria plana nos mapas. A história da Terra é montada como partes de um quebra cabeça, composta por eventos geológicos, físicos, químicos, biológicos e mais recentemente pela história das sociedades humanas.
Segundo a teoria da deriva continental, por volta de 250 milhões de anos da história geológica da terra, existiu apenas um único continente nomeado de Pangeia e que este começou a se fragmentar durante a era Paleozoica, essa teoria foi virulentamente rejeitada pelos paradigmas teóricos da época 1912. Somente depois da segunda grande Guerra mundial, com o advento dos submarinos e seu posterior uso para fins de pesquisas científicas sobre os assoalhos oceânicos, e através da teoria de tectônica de placas, foi possível resgatar a teoria da deriva continental e dessa forma entendê-la com base em princípios gerais da Física.
A vicariância nos estudos Biogeográficos é considerada como princípio básico da dispersão das espécies, e as mutações sofridas na estrutura dos organismos biológicos em virtude de algum fator do meio, é chave na compreensão da montagem do quebra cabeça da história geológica da Terra. Dessa forma os eventos geológicos relacionados ao movimento das placas tectônicas, mudanças climáticas, ou mesmo o desencadeamento de moléstias e pragas podem afetar diretamente nas especialidades de vida e na espacialidade na Terra. Nesse sentido podemos interpretar o fenômeno das Pandemias como sendo um fator de atuação deste mecanismo.
Sobre a Biogeografia
Analisando um leque de caracterizações sobre as delimitações do campo de estudo da Biogeografia, desde Troppmair (1989), Martins, (1992) Viadana (2004) podemos afirmar que o espaço aparece como conceito comum a todos os achados bibliográficos. Fato esse que a torna diferente da Biologia, Botânica e da própria ecologia. Além desse aspecto podemos perceber também que em praticamente todas as abordagens Biogeográficas, os elementos bióticos que compõem o espaço são o foco dos estudos desse importante campo de pesquisa.
Dessa forma surge o questionamento: Por que falarmos em Covid-19 pelas lentes da Biogeografia, sendo que a mesma trata somente dos elementos bióticos e sua dispersão no espaço, ou seja, os elementos vivos? Podemos afirmar apenas que na Biologia, até a presente data ainda não podemos visualizar um consenso entre o que é ser vivo e não vivo, e que a questão tem sido enfrentada em maioria dos casos, com base na consideração da estrutura celular. Levando em consideração esse fator, podemos dizer que um vírus como o SARS-Cov-2, o parasita causador da enfermidade conhecida como Covid-19, é um ser vivo? Logicamente que não, como sabemos, por ele ser um vírus, não possui estrutura celular, ou seja, são acelulares. Isso contrapõe a teoria celular, dessa forma, os vírus não poderiam ser considerados seres vivos.
De acordo com essa corrente um vírus só consegue reproduzir-se no interior das células, logo os vírus não possuem metabolismo próprio. Entretanto, dentro da virologia, assim como em qualquer campo do saber, reinam divergências a respeito de questões que são centrais para a evolução de leis e teorias, nessa linha existem os que acreditam que os vírus são vivos e baseiam seus argumentos nas ideias a respeito de os vírus apresentarem material genético “DNA ou RNA” além de os mesmos serem capazes de sofrer mudanças ao longo do tempo, ou seja, são passíveis de evolução.
Para nós, a questão é mais simples de ser resolvida. O homem é o ser vivo de maior complexidade da “esfera” terrestre, seja do ponto de vista do funcionamento do seu sistema biológico ou nas formas de organização em comunidades, populações ou sociedades. O SARS-Cov-2 é um vírus e por tanto um parasita de células hospedeiras, e que de acordo com seu histórico de dispersão ou mutações sofridas bem como pelo seu expansionismo, o mesmo passou de mamíferos como o morcego e conseguiu reproduzir-se na espécie humana, desse modo o homem torna-se, em uma última análise e atualmente o maior propagador do vírus Corona.
Assim, mais especificamente dentro da subdivisão da Biogeografia histórica e da Biogeografia médica, podemos vislumbrar a importância da abordagem sobre a pandemia de Covid-19 pelo viés Biogeográfico. A “Biogeografia histórica estuda as causas da atual distribuição, a diferenciação, e a extinção de espécies, e a Biogeografia médica estuda a distribuição e as causas da ocorrência de pragas e moléstias” (TROPPMAIR, 1989, p.5).
A Biogeografia médica tem contribuído bastante principalmente em países que se situam em regiões tropicais, e que por isso registram alta incidência de moléstias como exemplo a dengue e a febre amarela, no caso brasileiro. Por essa perspectiva, os estudos e as abordagens Biogeográficas tem levado em consideração alguns fenômenos como as migrações e doenças infecciosas e parasitárias, desse modo a Biogeografia introduz no interior das análises, os organismos acelulares “parasitários, como o SARS-Cov-2”.
Ao abordar a questão sobre o desencadeamento de moléstias e pragas, além de outros temas como os relacionados a viroses, zoonoses, aos surtos, epidemias e pandemias, pode-se inferir que a Biogeografia atual deve levar em consideração os determinados tipos de padrões culturais das sociedades humanas, como hábitos alimentares, higiene pessoal, bem como outros fatores que não são diretamente relacionados à cultura, mas sim a estrutura, como exemplo o saneamento básico, o acesso à água potável e uma alimentação saudável, ou seja, o meio ambiente. Dentro dessa perspectiva uma Pandemia pode ser levada em conta como um possível fator de vicariância nos estudos da Biogeografia médica e histórica.
AFLORANDO AS REMINICÊNCIAS FINAIS
A Biogeografia médica é encarada como de grande função dentro de um contexto de Pandemia, investigando as causas e a dispersão de organismos vivos ou parasitários no espaço mundial. Dentre médicos, virologistas, biólogos, alguns biogeógrafos, dentre outras especialidades vem desenvolvendo estudos, elaborando mapas, gráficos e outros instrumentos de análises para manter atualizado diariamente os cadastros, sistemas de informações e demais ferramentas das Organizações Mundiais de Saúde.
Aqui, utilizando-se de uma linguagem um pouco mais literária, a vicariância é compreendida como o caos, como uma hemorragia, um curto circuito, um acidente no meio do caminho que nos obriga a mudar o percurso até então planejado. Dessa forma, as diferenças nas configurações físicas da terra, as mudanças climáticas e as Pandemias constituem-se em fator de vicariância nos estudos Biogeográficos, logo é fundamental a compreensão dos surtos de doenças infecciosas, epidêmicas e das Pandemias sobre o olhar da Biogeografia.
Observando as propostas de se combater à Pandemia de Covid-19, adotadas pelos conjuntos de nações e estados federados, fica claro que a causa da atual Pandemia é a transmissão sustentada, “sem obstáculos” do vírus entre humanos. Os efeitos de uma Pandemia sobre as sociedades são dramáticos e caóticos, tendo em vista as consequências desse fenômeno nos sistemas de saúde e setores socioeconômicos dos países e Estados.
Certamente, a alternativa que se tem para frear o avanço de eventos dessa natureza, é a diminuição de aglomerações humanas, por outro lado percebe-se que tal medida é a causa de outras crises, a retração dos mercados e a superlotação da saúde, além de pequenos colapsos pontuais, são nesse caso, em última análise sintomas de um problema comum, a Pandemia de Covid-19. Por fim, ficam os aprendizados das situações vividas, as sociedades atingidas e que resolvem por tomar medidas de precaução com relação ao evento em foco, sofrem uma verdadeira mutação, passam por claras metamorfoses sociais e de valor.
REFERÊNCIAS
BEVERIDGE, W. I. B. Influenza: The Last Great Plague. An Unfinished Story of Discovery. New York: Prodist, 1977. ISBN 0-88202-118-4
DOMINGO, Esteban; WEBSTER, Robert; HOLAND, John. Origin and Evolution of Viruses. San Diego: Academic Press. p. 380. 1999. ISBN 0-12-220360-7
LEMOS, Marcela Coelho de. Como surgiu o novo Coronavírus (COVID-19). Tua saúde, 2020. Disponível em: https://www.tuasaúde.com/misterioso-virus-da-china/ Acesso em: 22 de Março de 2020
MARTINS, Celso. Biogeografia e ecologia. 5. Ed. São Paulo: Nobel, 1992.
SELLWOOD, Chloe. Brief History and Epidemiological Features of Pandemic Influenza. In: VAN-TAM, Jonathan. Introduction to Pandemic Influenza. Wallingford, Oxfordshire: CABI. p. 41-56, 2010. ISBN 978-1-84593-578-8
TROPPMAIR, Helmut. Biogeografia e Meio Ambiente 3. Ed. Rio Claro: s.e, 1989.
VIADANA, Adler Guilherme. Biogeografia: Natureza, Propósitos e tendências. In: VITTE, Antonio Carlos, GUERRA, Antonio José Teixeira (org.). Reflexões sobre a Geografia Física do Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
Fernando Edson de Abreu Ramos
Especialista em Gestão Ambiental com desenvolvimento sustentável
Discente do programa de mestrado em Geografia pela Universidade Federal do Piauí
Rafaela dos Santos Leal
Especialista em Educação do Ensino Superior
Discente do programa de mestrado em Geografia pela Universidade Federal do Piauí
Categorías: territorial