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ELA NÃO ATRAVESSOU A RUA... (IMPRESSÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA DE SER NEGRO NA ARGENTINA)

Adriano Rodrigues de Oliveira

Era uma agradável noite de domingo. Havia chegado há pouco mais de duas semanas na cidade de Córdoba, segunda maior cidade da Argentina e capital da província que recebe o mesmo nome. Ali faria uma temporada de formação profissional junto à Universidad Nacional de Córdoba. Era outubro de 2022, o país respirava dois ares similares e ao mesmo tempo distintos a 1978. Aquele ano marcara o primeiro mundial de futebol vencido pela seleção Argentina que servira como cortina de fumaça para as atrocidades da ditadura que havia deposto a presidenta Maria Estela Perón, dois anos antes e que perduraria até 1983. Agora era 23 de outubro de 2022, a um mês do primeiro jogo da seleção argentina na copa do mundo, quando seria surpreendida por uma virada de 2x1 para a oportunista seleção da Arábia Saudita, que arrefeceu os ânimos em torno do tão sonhado tricampeonato da “scaloneta”, nome carinhosamente conferido à seleção de Lionel Scaloni. Mal sabiam eles (tampouco eu) que 60 dias depois se consagrariam como campeões do mundo numa emocionante final contra a potente seleção francesa.

Mas, o meu foco naquela noite era outro: saí de casa para ir ao belíssimo Cine Club Municipal Hugo del Carril, localizado no centro da cidade, para assistir ao filme Argentina, 1985, do diretor Santiago Mitre, protagonizado pelo talentoso Ricardo Darín, que interpretou o promotor Julio Strassera, responsável pela acusação no julgamento dos principais comandantes do regime militar argentino. O filme retrata os bastidores do processo que julgaria os réus sob a acusação de responsabilidade direta ou indireta, das mortes e torturas de opositores ao regime, que segundo as estimativas, totalizam cerca de 30 mil pessoas no período de 1976 a 1983. Isso coloca a ditadura argentina na dianteira mais sanguinária de todas as ditaduras que assolaram a América Latina no período.

Pela 7ª arte, a Argentina agora apresentava, para o mundo em geral e para o Brasil em específico, como devem ser tratados os protagonistas das ditaduras. Não apenas pela qualidade artística, mas principalmente pela relevância histórica, o filme foi indicado para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Internacional no ano de 2022.  Lá, ao contrário de cá, os ditadores foram reconhecidos como o que realmente são e a ditadura, colocada no seu devido lugar: violenta, degradante e perversa.

Ao final da projeção do filme, inebriado entre o desenrolar da história e o desafio de compreender tudo numa língua estrangeira, fui surpreendido pela plateia na sala do cinema que, no entremeio entre os créditos que subiam a tela e a meia luz que agora atordoava as minhas pálpebras, entoava quase que como uma orquestra de uma ópera, mas de punhos cerrados e erguidos: “Olé olé, olé olá, olé olé, olé olá! Como a los nazis les va a passar! A donde vayan los iremos a buscar[1]”. Minha reação não poderia ser outra, senão sacar o telefone para filmar aquele momento único, enquanto sentia os pelos eriçados em minha pele.

A noite fresca, as ruas movimentadas e sensação de segurança eram um convite para a caminhada noturna, afinal o percurso de pouco mais de dez quadras era passível de ser percorrido em menos de 20 minutos. Ainda me acostumava com a ideia de caminhar pelas ruas do centro da cidade, independente de ser dia ou noite. Ao contrário de Goiânia, cidade onde vivo no Brasil, Córdoba transmite uma sensação de segurança comparável às cidades europeias que invariavelmente se constituem como referência turística aos brasileiros, mesmo acumulando aproximadamente 1,5 milhão de pessoas. Essa sensação, provavelmente era influenciada pelo “calor” transmitido pelos transeuntes e pelas informações pretéritas obtidas junto aos amigos e colegas da cidade.

Saí do cinema, localizado no Boulevard San Juan, caminhei cerca de 30 metros até acessar a Calle Obispo Trejo pela qual percorreria cerca de 900 metros até chegar na avenida Pueyrredón onde se localizava o endereço no qual estava vivendo a época. No Brasil, confesso que não tenho vasta experiência como pedestre. Em Goiânia, quase nunca, a não ser nos parques da cidade em momentos de lazer/exercícios. Na maioria das vezes, as caminhadas se inscrevem às viagens para outras cidades do país, notadamente durante congressos.

Minha caminhada naquela noite também era uma “novidade”. Depois de percorrer aproximadamente a metade do meu caminho de volta, na medida em que me distanciava do Cine Municipal, a quantidade de pessoas também raleava. Era aproximadamente 23h30. A luminosidade da Obispo Trejo era tenra, considerando o entremeio dos postes de iluminação com as árvores que ornamentam e refrescam o centro da cidade, nas calorosas tardes do verão Cordobés. Na minha calçada, no sentido oposto, se aproximava uma jovem. Provavelmente era universitária, já que a cidade é um polo universitário e o bairro que escolhi para viver possui grande concentração de repúblicas estudantis, pela proximidade com o campus da Universidad Nacional de Córdoba. A jovem falava ao telefone celular. Era branca. A distância entre mim e ela se encurtava. De súbito, imaginei: “ela vai guardar o celular e atravessar a rua”. Me preparei para evitar movimentos bruscos, visando transmitir segurança para àquela jovem mulher branca que em instantes cruzaria com um homem negro.

Mas, não! Isso não aconteceu: ela não atravessou a rua! Tampouco fez qualquer gestual que representasse a linguagem corporal de medo ou insegurança. Simplesmente seguiu o seu percurso. Coube a mim, fazer o mesmo, encucado com àquilo que acabara de experenciar. Há algumas linhas, assinalei a minha pouca experiência em caminhadas. Tenho pouco mais de duas décadas de graduado em Geografia. Esse tempo coincide com a minha “ascensão socioeconômica”. Na primeira oportunidade, comprei uma motocicleta, logo depois “evolui” para outros veículos. Seria essa a explicação para que eu abandonasse as caminhadas? Seria por insegurança? Minha ou dos outros? O tempo da minha formação como geógrafo coincide com a minha autodeterminação como homem negro. No passado, muitos episódios de racismo passavam despercebidos. Mas isso ficou no passado.

Hoje rememoro as situações vivenciadas por mim ou por pessoas próximas, em situações temporo-espaciais diversas. Na infância e adolescência eram os “apelidos”, adjetivações típicas atribuídas às crianças negras. Na juventude aconteceu no “baculejo” da blitz policial, quando era motociclista. Em supermercados (daqui e do além-mar). Na França, não era incomum ser acompanhado por um segurança – quase-sempre-também-negro-e-imigrante – enquanto fazia compras. Nos shopping-centers e nos aeroportos, invariavelmente na seleção “aleatória” para vistoria de bagagem de mão. Em mesas de restaurantes e/ou confraternizações, nas quais os amigos “justificam” a minha presença diante de convidados (brancos) desconhecidos: “ele é professor da UFG” ou “já até viveu no exterior durante o seu doutorado”. Mas, no que toca a experiência de pessoas mudando de calçada, ainda que eu não ande muito a pé, as histórias se avolumam. Acontece principalmente quando estou sozinho. No que toca a dimensão dos “baculejos”, ao ouvir os inúmeros relatos de estudantes-amigos que acumulam essas situações, me ponho a levantar hipóteses de o porquê acontecer “menos” comigo: i) seria por que não ando a pé? ii) ou por que não saio na rua em determinados horários? iii) seriam os bairros segregados que frequento? iv) ou a minha faixa etária? Tudo isso ao mesmo tempo? Sendo isso, não seria essa a explicação para evitar andar a pé, sozinho? Tenho medo da violência urbana ou tenho medo de que as pessoas tenham medo de mim?  

Desde aquela noite essa inquietação me acompanha. Já relatei para algumas pessoas do meu convívio. Há uma ebulição de pensamentos que me movem. Iniciar esse texto traçando um paralelo entre o futebol e a ditadura argentina, não foi por acaso. Como dito, durante a maior parte da minha estadia, o país respirava futebol. E neste período, pipocaram matérias jornalísticas buscando explicar o porquê de a seleção argentina ser “tão branca”, contrariando a expectativa de uma América Latina eminentemente “mestiça”. Normalmente essas preocupações são provenientes da mídia europeia. Interessante notar que a mesma medida não se aplica à correção dos efeitos perversos da colonização protagonizada por àquele continente, notadamente pela escravização dos povos originários daqui ou de África.

Recorri a alguns estudos acadêmicos que se debruçaram sobre a “branquitude” do povo argentino. Também dialoguei com alguns colegas da Universidad de Córdoba. As respostas convergem para duas dimensões centrais e correlatas. A primeira é a hegemonia da projeção imagética da mídia hegemônica, que tem Buenos Aires como “síntese” do mito de homogeneidade racial. Foi para aquela cidade que se concentrou o maior fluxo de imigrantes do final do século XIX e início do século XX, empurrando para “fora”, ou seja, para o interior do país, a população “mestiça”. A segunda dimensão se relaciona com a primeira e diz respeito à autodeterminação do povo negro. A principal reinvindicação dos movimentos negros é a luta pelo reconhecimento da existência de uma população afrodescendente[2].

A autodeterminação do povo “não-branco”, composta por afrodescendentes e povos originários é um processo em construção muito atrelado às reinvindicações de classe. As determinações de características da negritude possuem aspectos muito limitados e específicos, o que leva as pessoas afrodescendentes, que em outros países se reconheceriam e seriam identificadas como negras, na Argentina, são identificadas como “brancas e brancas de pele escura[3]”. Não há na autodeterminação e/ou identificação a graduação de pretos e pardos como no Brasil, por exemplo. Somente no Censo Nacional de 2010 houve no inquérito uma pergunta sobre autopercepção de afrodescendência. Porém, essa amostra alcançou apenas 10% da população recenseada naquele ano.  

No Censo de 2020, postergado pela pandemia de Covid-19, passou-se a incluir de forma geral a pergunta sobre a afrodescendência. Diante do exposto, não é uma tarefa simples, explicar a natureza do racismo argentino. A ativista Carmen Yanone que participa da organização 8 de noviembre que aglutina vários coletivos afro, entrevistada pelo cientista político Guillermo Orsi, constrói uma explicação tendo como base empírica, a capital nacional, Buenos Aires. Para ela, na Argentina, “uma ‘pessoa negra’ pode ter a pele clara e nenhuma característica tida como típica dos afrodescendentes. O contrário também é possível: uma pessoa de pele clara, mas de classe baixa, pode ser reconhecida como ‘um negro’.”

Tal interpretação me ajuda a compreender parcialmente a jovem “não atravessar a rua”. A Geografia explica! Talvez, em sua percepção espacial, um “negro” não transitaria pelo espaço segregado do centro da cidade. Naturalmente a minha presença naquela porção territorial da cidade estaria atrelada ao “branqueamento econômico” que me permitiria estar ali. Seria essa explicação plausível? A medida do racismo argentino não é uma tarefa fácil. Principalmente para alguém que não possua uma trajetória de pesquisas sobre a temática. Minha percepção é a de um homem negro no exercício intelectual de compreender a minha vivência em um país que a priori poderia assustar pela “ausência” de negros. Já vimos que essa ausência está mais atrelada ao apagamento histórico da afrodescendência do que a inexistência desta população. Tal percepção é inequívoca quando nos afastamos do centro da cidade de Córdoba. Não é preciso ir para as regiões andinas. O entorno do Mercado Público do Norte (da cidade) já é pedagógico. Os tons de pele se modificam. O público de jovens (i)migrantes universitários não frequenta a periferia. No comércio de rua, encontramos a diversidade e as diferentes matizes do povo Cordobés.

Diante de tudo isso, a inquietação permanece: seria mais fácil ser negro na Argentina? Obviamente a minha condição de privilégio em uma fração de tempo limitada a um espaço de um bairro nobre e com um rendimento proveniente de uma moeda com câmbio favorável não é suficiente. Não posso cair na sedução e deslumbramento dos incautos com a experiência migratória. Vivo em um país que cujo racismo adquire diferentes tons.

Enquanto finalizo este manuscrito, vejo um debate profícuo para a determinação do racismo brasileiro: seria ele estrutural nos moldes reivindicados pelo professor Silvio de Almeida[4], agora ministro de Direitos Humanos e da Cidadania? Seria ele institucional como alerta o brilhante professor Muniz Sodré[5]? Por óbvio, não cairei nas “cascas de banana” que a mídia hegemônica brasileira insiste em jogar diuturnamente à quem ousa (re)existir.

É nítido e notório o processo de ocultamento do racismo à brasileira. Isso se materializou(za) no apagamento histórico das lutas, na criminalização das manifestações religiosas, na apropriação cultural entre outras dimensões. O fato é que a sociedade brasileira é inequivocamente racista! Há uma profunda fissura que separa o povo negro (quase sempre pobre) dos brancos, mesmo que pobres. É consenso que a raiz do racismo está atrelada ao regime escravocrata, que tem sua origem na estrutura econômica do capitalismo colonial.

Por sua vez, as instituições que moveram estas estruturas, conectadas com o regime de acumulação internacional, foram capazes de antecipar em 38 anos o “cativeiro da terra”, como tão bem definiu o sociólogo José de Souza Martins[6]. Para que os trabalhadores fossem livres era necessário a instituição da propriedade privada da terra, ensejando a seguinte metamorfose: a terra, que era livre, passou a ser cativa, o trabalhador, que era cativo, passou a ser livre. A Lei de Terras foi promulgada em 1850, instituindo a propriedade privada da terra. Por sua vez, a Lei Áurea foi instituída em 1888, abolindo a escravidão e criando um “exército” de pessoas “livres”. Mas, que liberdade foi essa? Aos africanos e seus descendentes não houve políticas públicas visando a sua absorção na sociedade brasileira. A esse povo não foi conferido um “sistema de cotas” como àquele estruturado para receber os imigrantes europeus no sul do país[7].

Considerando a minha condição de um negro que acessou à posição de professor e pesquisador universitário, não raras às vezes, fui inquirido nas razões em não eleger a questão racial como agenda de pesquisa. No princípio também me questionava a este respeito. Aos poucos fui compreendendo que a minha agenda não está separada deste tema. Qualquer estudo de questão agrária brasileira que não passe pela questão racial será parcial, pois não seria a terra cativa signo da história de um país escravocrata?

Minha abordagem do tema passa eminentemente pela estrutura de classes que move a sociedade brasileira. Não parto de uma leitura estanque, busco sempre a justaposição contraditória dos processos, composta pela totalidade socioespacial. Milton Santos quando indagado se era difícil ser um intelectual negro no Brasil, respondeu que: “é difícil ser negro! E é difícil ser intelectual, no Brasil. Essas duas coisas, juntas, dão o que dão, né[8]”. Esse é o caminho que procuro trilhar! Tenho dificuldades em me autodefinir como um intelectual, mas tenho como convicção o exercício permanente de pensamento, ancorado em elucidar inquietações. Talvez isso me faça um intelectual, seguindo a risca a afirmação que o mestre Guimarães Rosa sentenciou: “eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa”.

 

Adriano Rodrigues de Oliveira.

Graduado, Mestre e Doutor em Geografia. Um dos (poucos) professores negros do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA) da Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: adriano.oliveira@ufg.br

 

 

[1] “Olê olê olê olá, olê olê olê olá
Como os nazistas, lhes vai passar,
aonde forem nós iremos lá buscar!”. Tradução livre.

[2] Ver o artigo “Não há negros na Argentina”: o mito da homogeneidade racial argentina, publicado pelo cientista político Guillermo Omar Orsi na Revista Simbiótica, v.9, n.2, mai.-ago./2022. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/simbiotica/article/view/39249 Acesso em 20 de mar 2023.

[3] Op. cit.

[4] Ver: Almeida, Silvio. Racismo Estrutural (Feminismos Plurais) São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen Livros, 2019.

[5] Ver: Sodré, Muniz. O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional. São Paulo: Vozes, 2023 e a entrevista concedida à coluna Ilustríssima do Jornal Folha de São Paulo em 18.mar.2023 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/03/aceito-a-expressao-mas-racismo-nao-e-estrutural-no-brasil-diz-muniz-sodre.shtml

[6] Martins, José de Souza. O Cativeiro da Terra. 9ª ed. São Paulo: Contexto, 2010.

[7] Ver o texto do jornalista e historiador Tau Golin Os cotistas desagradecidos publicado originalmente no Portal Geledés em 2014. Disponível em:  https://www.geledes.org.br/os-cotistas-desagradecidos/

[8] Ver o documentário Encontro com Milton Santos: o mundo global visto pelo lado de cá, de Silvio Tendler. Disponível em: https://youtu.be/-UUB5DW_mnM

 

Ficha bibliográfica:

OLIVEIRA, Adriano Rodrigues de. Ela não atravessou a rua... (impressões sobre a experiência de ser negro na Argentina). Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, vol. 13, n.15, 18 de abril de 2023. [ISSN 2238-5525].

 

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