PARA MUITO ALÉM DO “MEIO AMBIENTE”: GEOGRAFIA AMBIENTAL E PENSAMENTO CRÍTICO
Rodrigo Dutra
O objetivo deste texto é oferecer uma resenha da Live Webinar da Associação de Geógrafos do Brasil – Seção Goiânia, intitulada ‘Para muito além do "Meio Ambiente": Geografia Ambiental e pensamento crítico’, com o Prof. Dr. Marcelo José Lopes de Souza, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a qual foi transmitida pelo canal do YouTube, da AGB GOIÂNIA, em 16 de junho de 2020. O vídeo pode ser acessado por meio do endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=PQA9Xqkxbt4.
Conforme informações obtidas da Plataforma Lattes, o Professor Marcelo José Lopes de Souza possui graduação em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), especialização em Sociologia Urbana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1987), mestrado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988) e doutorado em Geografia (área complementar: Ciência Política) pela Universität Tübingen (Alemanha) (1993). É coordenador do GAEP – Núcleo de Pesquisas em Geografia Ambiental e Ecologia Política da UFRJ, e afirma que a temática que mais trabalha é a da injustiça ambiental.
Ele inicia a exposição já com uma questão: “O que é o pensamento crítico?” Aqui, cabem duas interpretações. Uma é no sentido filosófico, onde o pensamento crítico é entendido como o raciocínio, o juízo sistemático racional, desconfiando das tradições e opondo-se a todo e qualquer dogmatismo. E, por estar na essência da Iluminismo, tem como Immanuel Kant o exemplo mais paradigmático dessa interpretação. A crítica é consolidada no período iluminista. Porém, Souza afirma que não é nesse sentido que está proposto o subtítulo da explanação. No caso em tela, trata-se de uma interpretação do pensamento socialmente crítico, aquele que tem a ver com a crítica social e cultural. E, também, com o inconformismo e com a crítica às instituições políticas e econômicas, às relações de poder e aos valores embebidos no imaginário, na medida em que estes reproduzem opressão, exploração e marginalização. Essa interpretação de pensamento socialmente crítico adquire forma a partir do século XIX, principalmente, com as contribuições do anarquismo clássico e do marxismo. E se traduz numa crítica ao capitalismo, ao Estado capitalista e às relações de poder hierárquicas e autoritárias, ou seja, relações heterônomas. Espera-se do pensamento socialmente crítico que ele seja sempre autocrítico, antidogmático e antissectário. Mas de acordo com Souza, isso nem sempre acontece. Souza também descontrói a ideia de que pensamento crítico é o mesmo que pensamento marxista. Para ele, isso seria um afunilamento da compreensão do que seja pensamento crítico e excluiria grandes pensadores, que contribuíram para a formação dessa ideia. Ademais, o pensamento socialmente crítico possui uma historicidade, o que resulta em transformações e incorporações de novas dimensões no decorrer do tempo, além de provocar controvérsias induzindo-nos às reflexões. E conclui que o pensamento crítico é dinâmico, plural e não se reduz a uma única ou algumas poucas correntes.
Na sequência, outra questão: “O que é a Geografia Ambiental?” Inicialmente, apresenta a Rede de Pesquisadores em Geografia (Socio)Ambiental – RPG(S)A <https://geografia-socio-ambiental.webnode.com/>. E convida todos a conhecerem e entrarem em contato. A RPG(S)A foi fundada em 2017 e reúne 21 pesquisadores que possuem origens e/ou identificações temáticas distintas. Portanto, a Geografia Ambiental é um pretexto de convergência e de diálogo. Apresenta o periódico ‘Ambientes: Revista de Geografia e Ecologia Política’, publicado pela RPG(S)A. Aproveitando-se do título da revista, já afirma que há intensa correlação entre Geografia Ambiental e Ecologia Política. E sugere a leitura do artigo “O que é a Geografia Ambiental”, de sua autoria, publicado no primeiro número da revista. A leitura do artigo permitirá um aprofundamento na temática.
Souza informa que sua exposição, a partir desse momento, será estruturada em 10 proposições ou teses:
1. A Geografia Ambiental não é um ramo, mas sim um enfoque ou olhar
A Geografia Ambiental não reivindica espaço de subdivisão ou de disciplina dentro da ciência geográfica. Portanto, é uma perspectiva, um enfoque, um olhar sobre o objeto. Trata-se de uma convergência de diálogo de saberes interdisciplinares, que vale-se de um conceito de ambiente entendido, numa concepção lato sensu, portanto não como “meio ambiente”. Meio ambiente conjuga dois termos holísticos e amplos que convergem em uma redundância, associando o entendimento a uma ideia de natureza primeira – natureza natural –, aquela evidenciada pelos filósofos naturais alemães, como é o caso de Schelling e sua “Erste Natur”. Esse entendimento exclui as questões socioambientais vinculadas diretamente ao ser humano.
Um enfoque ou um olhar porque, independente das diferentes origens, das experiências profissionais distintas e da amplitude dos arcabouços teórico-metodológicos e conceituais, há a tentativa de se construir o conhecimento baseado no diálogo de saberes intradisciplinares.
2. O olhar da Geografia Ambiental deriva da sinergia de duas fontes teórico-metodológicas
Uma fonte é a Ecogeografia[1]. E a outra é Sociogeografia[2]. Portanto, exclui-se uma ideia de Geografia Física e Geografia Humana. Ambas as fontes não se repelem, antes, se saúdam e se complementam. Tentar reduzir as duas contribuições a um padrão teórico-metodológico único é tão nocivo quanto separá-las cartesianamente.
3. Bipolarização não é o mesmo que dualismo; é, isso sim, dialética
Pensamento dialético quer dizer dois momentos, dois movimentos; coisas que interagem que se influenciam reciprocamente, que são interdependentes e se autorreforçam. Segundo Castoriardis, no limite, a própria fronteira do que é um e do que é o outro não desaparece, mas ela é relativizada. Por exemplo, as ideias de natureza e sociedade. São níveis de realidade que exigem tratamento diferenciados.
Para Souza, a polarização epistemológica ou epistêmica quer dizer centros de força. E as pesquisas terão suas particularidades e estas deverão ser respeitadas. Caminhar sobre esse campo de tensão/polarização é desafiador e enriquecedor. Infelizmente, nas últimas décadas, os geógrafos têm visto isso como um fardo, um estorvo, e tem voltado as costas para essa virtualidade.
No que se refere ao diálogo de saberes, à transversalidade epistêmica, é importante saber que a “perfeita simetria” integrativa é uma meta ilusória – uma autêntica ideia-obstáculo. Entretanto, em função das nossas limitações e preferências, nós construímos os nossos objetos de conhecimento, que não necessitam ser iguais. O que deve existir é um diálogo entre diferentes e que acarreta relações de complementaridade. Isso incorre em trocas e aprendizado.
4. A Geografia Ambiental é um recomeço (em novas bases), mas suas raízes são muito antigas
Suas raízes são tão antigas quanto a própria Geografia. Mais recentemente nos Estados Unidos, nos anos 1960, Willian Pattison postula sobre as quatro grandes tradições da Geografia. Entre elas, a tradição men and environment (sociedade e meio ambiente) é a mais popular da tradição geográfica. A Geografia Ambiental compartilha também da crítica realizada, nos últimos 40 anos, à Geografia Clássica ou Tradicional. Porém, cabe ressaltar que essa crítica se deu de maneira deficiente ao garantir avanços à ciência geográfica, mas, ao mesmo tempo, anulou muito do que era extremamente importante e foi construído ao longo de séculos. A ideia de Geografia Ambiental que vem tomando corpo nos últimos 15-20 anos, é um recomeço em novas bases. Ela não pretende se confundir com a Geografia. O que se busca é a legitimidade desse esforço e desse olhar, dessa construção de objetos do conhecimento híbridos. Mas, jamais deslegitimar a construção de objetos do conhecimento, que não sejam híbridos.
Esse esforço precisa ser resgatado em novas bases: maior sofisticação teórica, maior nível de exigência metodológica, um contexto epistemológico repensado. Os últimos 40 anos de crítica trouxeram valiosas contribuições, porém há que se fazer as devidas ressalvas.
5. A Ecologia Política possui um espírito semelhante ao da Geografia Ambiental, só que no plano interdisciplinar
A Ecologia Política é um campo interdisciplinar, principalmente, nas tradições francesa e latino-americana, e menos na anglo-saxônica. Naquelas tradições, a Ecologia Política está visceralmente imbricada com os movimentos sociais e com as formas de ativismo. Portanto não se trata somente de uma construção acadêmica; é uma construção epistêmico-política. E em seu aspecto acadêmico, ela é interdisciplinar.
Souza destaca o pioneirismo do estadunidense Murray Bookchin – desde o começo dos anos 1960 – e as importantes contribuições de sua ‘Ecologia Social’, que se traduz em Ecologia Política no sentido contemporâneo da expressão. Bookchin costuma ser esquecido por ter sido neoanarquista e autodidata. O austríaco, radicado nos Estados Unidos, Eric Wolf, publica um ensaio, que é um dos primeiros trabalhos a utilizar a expressão Ecologia Política de forma explícita. O geógrafo inglês Piers Blaikie, desde os anos 1980, já organizava obras, entre elas, o importante livro “Land Degradation and Society”. E o brasileiro Orlando Valverde é o pioneiro da Ecologia Política efetivamente do ponto de vista crítico, no Brasil. A Ecologia Política tem essa característica de criticidade, pois nasce de um contexto mergulhado em valores políticos e éticos no âmbito de um pensamento socialmente crítico. São expoentes desse discurso Orlando Valverde e Carlos Walter Porto-Gonçalves, que já nos anos de 1980, publicava livros nessa temática. Destaca, também, o mexicano Enrique Leff, químico de formação. E a indiana Vandana Shiva, física de formação, que é um dos grandes nomes da Ecologia Política das últimas décadas.
A Ecologia Política é interdisciplinar e tem a proposta de promover a transversalidade epistêmica, o diálogo de saberes, que no âmbito intradisciplinar, a Geografia Ambiental vem buscando enfatizar e promover.
6. A Ecologia Política pode ajudar a imunizar a Geografia Ambiental contra o positivismo e conformismo[3]
Enquanto, a Geografia Ambiental nem sempre está amparada e/ou sustentada por um pensamento socialmente crítico, a Ecologia Política o tem como marca de origem. Porém, é um pensamento socialmente crítico plural, que pode ser marxista, libertário, neoanarquista, autonomista, etc. Assim, a Ecologia Política serve como fonte de inspiração à Geografia Ambiental, imunizando-a contra determinados vícios positivistas e posições conservadoristas.
7. A Geografia Ambiental pode ajudar a imunizar a Ecologia Política contra o “sociologismo”
O professor assevera, que com essa tese, ele não tem nada contra a Sociologia e aos sociólogos. Até porque esse é um dos diálogos mais importantes para os geógrafos. A questão é que, em alguns casos, a Ecologia Política praticada, especialmente por sociólogos e antropólogos, pode se converter em um discurso especulativo sobre a natureza. Há que se ter um mínimo de interesse pela materialidade dos processos biogeofísicos. A Ecologia Política não pode ser confundida com a Filosofia.
Em alguns ambientes, essa dimensão da ecologia foi ficando mais pálida, tanto que o geógrafo estadunidense Peter Walker publicou, em 2011, o artigo “Ecologia Política: onde está a ecologia?”. Ou seja, um aspecto fundamental do binômio estava sendo negligenciado. Um dos aportes da Geografia Ambiental à Ecologia Política seria o de demonstrar que a reflexão estaria incompleta se não levasse-se em conta que é fundamental a presença dos fatores da dinâmica natural do planeta Terra. Souza cita, como a exemplo, a ligação visceral da Geografia com o trabalho de campo.
Souza sugere a leitura dos livros “O Que é Ser Geógrafo?”, de Aziz Ab’Saber e Cynara Menezes; “Land Degradation and Society” organizado por Piers Blaikie; “Grande Carajás: Planejamento e Destruição”, de Orlando Valverde; “Paixão da Terra - Ensaios Críticos de Ecologia e Geografia” e “Os Descaminhos do Meio Ambiente”, ambos de Carlos Walter Porto-Gonçalves. Essa Geografia Ambiental, feita por cada um ao seu modo e com ênfases diferentes, pode ajudar contra a perda ou o enfraquecimento da dimensão telúrica da Ecologia Política.
8. O ambiente que interessa à Geografia Ambiental vai muito além do “meio ambiente”
Como discutido, no início da apresentação, existe uma problemática na expressão “meio ambiente”. Mas, o problema não é só etimológico. Mas, sim, o que se esconde por traz do vocábulo, como o fato de privilegiar determinadas agendas, que muitas vezes são preservacionistas e não conservacionistas. E quando são conservacionistas, trata-se de um conservacionismo de mercado, a exemplo dos serviços ambientais e serviços ecossistêmicos, que caracterizam o uso da linguagem numa acepção neoliberal. E o pior, isso se entranha inclusive nos movimentos ativistas.
O que interessa à Geografia Ambiental não é o ambiente mutilado, mas, sim, o ambiente que é fruto da transformação da natureza primeira, a retransformação da natureza primeira em natureza segunda, dada pela materialidade do trabalho, e pelas retransformações infinitas da natureza segunda por meio das relações sociais. Ou seja, não somente o processo de trabalho, mas, também, as ressignificações. A partir desse entendimento, ideia de desastre natural é equivocada. Existem processos naturogênicos, porém, estes não desastres. Para todo desastre são necessários pressupostos sociais na organização e produção do espaço e efeitos humanos e sociais. Isso é que faz o desastre um evento complexo e compósito. Chamar um desastre de natural é uma das implicações de estar controlado pela ideia-obstáculo de “meio ambiente”. Analogamente, quando se fala em conflitos, há que se tratar de conflito socioambiental e não conflito ambiental, para não incorrer em confusão com a luta conservadora e um olhar estreito sobre o objeto. A rigor, todo conflito ambiental é social, porém para não incorrer nos riscos citados, utiliza-se uma redundância.
Portanto, o ambiente na Geografia Ambiental, assume um sentido conceitual-teórico amplo.
9. O “fator antrópico” escamoteia as clivagens e contradições sociais
Segundo Souza, outra ideia-obstáculo é o “fator antrópico”. A ideia é que a humanidade está promovendo a degradação ambiental, que a sociedade está produzindo um desastre. O risco de incorrer-se em ilações como a de que “o ser humano é mau” é grande. Como também é grande o risco de chegar-se ao neomalthusianismo e ao ecofascismo.
Trata-se de um nível de generalização e de abstração tão grande, que ele dificulta enxergar as responsabilidades dos agentes e atores sociais envolvidos, nas várias escalas, na construção de um problema ecossocial concreto. Quais as responsabilidades imediatas e as mediatas? É muito comum vermos só as imediatas e não enxergarmos as mediatas, onde se encontram os atores mais influentes e poderosos.
Também, as clivagens sociais, que têm a ver, por exemplo, com o racismo e as demais contradições sociais, vão resultar em injustiças ambientais concretas. O que vem a ocasionar o sofrimento ambiental. Daí a importância do diálogo de saberes, como neste caso, entre geógrafos e profissionais da área da saúde.
10. Geografia Ambiental e diálogo de saberes
Um diálogo de saberes para além da intra e interdisciplinaridade, ou seja, fomentar condições que não sejam opressivas ou artificiais para nenhum dos lados. De forma, que as diferentes subdivisões disciplinares ou disciplinas dialoguem de forma construtiva e estrutural. Isso é fundamental.
O diálogo de saberes vai muito além da interdisciplinaridade e da transversalidade, pois ele tem a ver com o próprio intercâmbio entre a academia e a não-academia, por meio de uma “humildificação” da academia. Os saberes tradicionais, veraculares, populares[4] também são importantes para a Geografia e, em especial, para a Geografia Ambiental. Como exemplo desse intercâmbio, ele cita a Etnopedologia e as discussões no âmbito da Agroecologia.
Rodrigo Marciel Soares Dutra (rodrigo.dutra.gyn@gmail.com)
Doutorando em Geografia pela Universidade Federa de Goiás.
[1] Desenvolvida por Jean Tricart.
[2] Baseada na Geografia Social de Élisée Reclus.
[3] Conformismo pode ser substituído por conservadorismo.
[4] O que o antropólogo Clifford Geertz chamou de saber local.
Ficha bibliográfica:
DUTRA, Rodrigo. Para muito além do "Meio Ambiente": geografia ambiental e pensamento crítico. Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, vol. 14, n.16, 24 de junho de 2024. [ISSN 2238-5525].
Categorias: territorial