NIGUÉM, EXCETO CESAR CALEJON, ESCREVERÁ AO MINISTRO HADDAD
Tadeu Alencar Arrais
-Enquanto isso, o que é que nós vamos comer
– perguntou, agarrando o Coronel pelo colarinho.
Sacudiu-o com força.
-Diga, o que nós vamos comer.
O Coronel precisou de setenta e cinco anos de sua vida,
minuto a minuto – para chegar àquele instante.
Sentiu-se puro, explícito, invencível, no momento de responder
- Merda.
Gabriel García Márquez, Ninguém escreve ao Coronel, p. 95.
Só um gráfico. Nada de equações, exercícios matemáticos ou modelos inspirados em cenários geopolíticos internacionais. Apenas um gráfico. O mais, talvez, simples dos gráficos para uma aula de geografia para alunos do ensino básico.
Figura 1. Brasil, evolução da população por local de domicílio
Fonte: IBGE-SIDRA (2024)
Uma Lei. Uma Lei com poucos parágrafos, caputs e artigos. Apenas uma Lei inspirada em outra, já caduca Lei, conhecida como PEC-95. A mais, talvez, didática das leis publicadas no Diário Oficial da União no Governo Luís Inácio Lula.
Figura 2. Excerto da Lei Complementar Número 200, de 30 de agosto de 2023
Fonte: Brasil (2023)
O gráfico, isolado das determinações da vida cotidiana de um país de 8,5 milhões de Km2, é apenas um conjunto de linhas. Mas esse gráfico pode ser interpretado como uma síntese de vários movimentos da sociedade brasileira. Não só o aumento da população total, mas também sua movimentação no espaço, afinal, já em 1970, nos tornamos uma sociedade, formalmente, urbana. A urbanização, acompanhada da industrialização e impulsionada pela modernização da agropecuária, mudou o perfil regional do território nacional. As linhas ascendentes também representam as acumuladas e crescentes demandas sociais da população urbana e rural. Demandas por direitos sociais que, primeiramente, frequentaram o asfalto para, em seguida, atingir os roçados. São, igualmente, linhas ascendentes da questão urbana, traduzida no déficit habitacional e na carência de saneamento básico. Também é a curva da saúde e da educação, ou melhor, a curva de expectativas, crescentes, por hospitais, vacinas, unidades básicas de saúde, escolas, creches, universidades etc.
Não é segredo que, durante parte significativa do século XX, as expectativas de acesso aos serviços de educação e saúde pela camada mais pobre da população foram frustradas. A oferta desses serviços se localizou, sobretudo, no mercado privado e nas áreas densamente povoadas. Para uma porção significativa do país que assistia o projeto de modernização conservadora só restava a expectativa de esperar o bolo crescer para, depois de cortado, se alimentar das migalhas caídas ao redor da mesa.
A Constituição de 1988, símbolo da democratização, democratizou as expectativas de mobilidade social, afinal aprendemos que a educação sedimentaria as escadas da cidadania e da qualificação profissional. No final da década de 1980 já éramos quase 150 milhões de pessoas. A partir do texto da Carta Magna podemos, novamente, olhar o gráfico de linhas. Perseguimos, desde então, um tipo de cidadania que tornava imperativa a universalização dos serviços públicos e, ao mesmo tempo, a garantia dos mínimos para a sobrevivência dos mais vulneráveis. Os Artigos 6º, 7º e 194 da Constituição Federal resumem essas expectativas:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;
II - seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário;
III - fundo de garantia do tempo de serviço;
IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Que relações podemos estabelecer entre os três artigos da Constituição Federal, a Figura 1 e a Figura 2? A Figura 1 pode ser representada como uma síntese, desde que não se desconsidere a qualificação dos sujeitos, das demandas acumuladas da população brasileira. Já os artigos 6º, 7º e 194º demonstram como o Estado brasileiro reconheceu e, ao mesmo tempo, foi edificando os meios políticos, institucionais e financeiros para atender tais demandas. Em síntese: o crescimento da população, seu envelhecimento e seu empobrecimento, por exemplo, impôs mais atenção com a educação, a saúde e a assistência social. Nesse interregno surge a Figura 2, que sistematiza o que o governo de esquerda adjetivou de Novo Arcabouço Fiscal Sustentável. A lógica, bastante simples, é equilibrar as contas públicas a partir da redução das despesas, garantindo o espaço para reprodução das elites financistas. É o próprio Governo Federal que esclarece a mecânica do Novo Arcabouço Fiscal:
Há uma banda (piso e teto) para o crescimento real (descontada a inflação) das despesas do governo entre 0,6% e 2,5%. Isso evita gastos excessivos em momentos de maior crescimento econômico, quando as receitas crescem mais aceleradamente, e de paralisação do setor público quando há desaceleração da economia e as receitas caem. É um mecanismo que garantirá recursos para o custeamento adequado dos serviços públicos, como direcionamento dos recursos arrecadados da sociedade para gastos prioritários e para a ampliação dos investimentos públicos, sempre com contas sob controle. Isto é, trata-se de um instrumento que visa garantir responsabilidade social com responsabilidade fiscal (Brasil. Gov-Fazenda, 2024).
A obsessão pelo equilíbrio fiscal, associado a ideia, manifestada formalmente pelo Governo Federal, de prestar condolências aos investidores e agentes internacionais, não apenas impõe limites, mas também impede a realização, ainda incompleta, do processo de universalização dos serviços públicos. Quem comeu o bolo de fubá comeu. Aos atrasados, nem mesmo as migalhas. A ideia agora é ajustar as contas a partir das despesas primárias, eufemismo eficiente para justificar a redução dos gastos com o conjunto, crescente, de serviços públicos. Aqui entra tanto a manutenção quanto a construção de uma creche e a contratação de professoras. Tanto a modernização ou a construção de um hospital e a contratação de enfermeiras. A concessão dos mais variados benefícios sociais, a exemplo do BPC (Benefício de Prestação Continuada) e da Aposentadoria Rural, entre outro conjunto bastante elástico de despesas sociais, são classificadas como despesas primárias.
Figura 3. Brasil, cadastro, por categoria, no Cad-Único, em outubro de 2024
Fonte: MDS (2024)
É possível, ainda pensando no gráfico de linhas, deduzir que o crescimento da população atingiu, entre 2010 e 2022, o percentual de 0,52 ao ano. No mesmo período, a população idosa passou de 14 milhões para 22,2 milhões, correspondente ao incremento de 7,4% entre 2010 e 2022. No ano de 2022, como divulgou o IBGE, 8,1% da população brasileira ainda vivia em favelas e comunidades urbanas invisíveis para os príncipes da austeridade fiscal. É possível imaginar, sendo a população, segundo os dados atualizados do CAD-Único, ainda consideravelmente pobre e de baixa renda, que a pressão por serviços públicos na área de saúde e educação, além dos investimentos assistência social, aumentará a cada ano. Há, portanto, uma incompatibilidade genética entre a crescente necessidade de universalizar os serviços públicos e a matriz política e econômica que não apenas reduz, mas também sucateia os serviços públicos existentes, pavimentando o caminho para as privatizações. Não haverá saída para a porção mais miserável da população, isso porque
- a oferta de serviços públicos de saúde e educação básica, considerando a qualidade, manifestada pela infraestrutura e pela disponibilidade de servidores públicos, já é bastante assimétrica regionalmente. Isso significa admitir que a necessidade de universalização esbarra no subfinanciamento dos sistemas públicos de educação básica e de saúde. É provável, retomando no nosso gráfico de linhas, que o sucateamento dos serviços públicos da educação e da saúde alimente, em cada canto do país, a mentalidade privatista neoliberal.
- o sucateamento, produto do subfinanciamento, surtirá efeito diferencial em nossa geografia. Ocorre que, como tem divulgado o Observatório do Estado Social Brasileiro, em 38,7% dos municípios brasileiros, em área equivalente a 33,5% território nacional e população total equivalente a 8,63% da população total, não há registro de oferta privada de estabelecimentos de saúde. Na educação básica, em 43,3% dos municípios não há registro de oferta privada, em área equivalente a 38,9% do território nacional e população total de 8,28% da população do país. O mercado não ofertara serviços nos amplos espaço periféricos e, a partir de agora, esquecidos pelo Estado nacional. “Vocês não existem e não são valiosos para nós”.
Área |
Municípios sem registro de oferta privada |
||
Total |
Área (Km2) |
População total |
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Saúde |
2.158 |
2.855.310,4 |
17.527.803 |
Educação |
2.397 |
3.316.714,9 |
16.833.180 |
Figura4. Brasil, municípios sem registro de oferta privada de estabelecimentos de saúde e de educação básica, 2023
Fonte: Observatório do Estado Social Brasileiro (2024), DATA-SUS (2023), INEP (2023)
Figura 5. Estimativa preliminar de impacto, em bilhões, entre 2025 e 2030
Fonte: Adaptado de Governo Federal (2024)
As dúvidas sobre os efeitos perversos do Novo Arcabouço Fiscal, mesmo para a militância mais ingênua, foram, didaticamente, solucionadas na última semana com o anúncio de um conjunto de medidas, segundo o Governo Federal, necessárias para controlar as contas públicas. As medidas, no entanto, estão centradas no controle de despesas sociais. O quadro síntese das medidas, transformado em linhas evolutivas na Figura 5, oferece outra imagem do conjunto das medidas. Cada uma dessas linhas guarda um gradiente de repercussão material na vida das pessoas. Da economia projetada de 326,9 bilhões de reais, 67,97%, de partida, afetam diretamente os mais pobres. Todo o conjunto de medidas foi, milimetricamente, pensado para atingir os mais pobres, isso sem contar o fato que ficarão, ainda mais, mais pobres. A redução nos valores do Fundeb (Tempo Integral), passando pela redução do BPC e terminando na redução do ritmo de crescimento do Salário Mínimo não deixam margem, sequer, para interpretações A cassação de benefícios para deficientes e idosos vulneráveis e a redução no ritmo de crescimento do Salário Mínimo, por dois motivos, são as mais cínicas:
- O eufemismo recorrente, em relação ao BPC, passa pela divulgação de uma condição sistêmica de fraudes. Não podendo apresentar dados que comprovem e, portanto, justifiquem os cortes, o Governo Federal mudará, entre outras medidas, a forma de composição da renda, medida que colocará centenas de milhares de beneficiários em condição irregular por ultrapassar o robusto teto de ¼ do Salário Mínimo por pessoa. Os cortes no BPC, segundo projeção do Governo Federal, atingirão 12 bilhões de reais. Na prática serão cortados 118 mil benefícios por ano, equivalente aos 2 bilhões por ano, o que, em 2030, atingirá 708 mil beneficiários. Não podemos esquecer que o BPC é o mais importante dos benefícios sociais brasileiros, envolvendo, diretamente, mais de 12 milhões de pessoas. Foram emitidos, em setembro de 2024, 2.710.858 benefícios na modalidade idoso e 3.477.897 na modalidade portador de deficiência. No entanto, o BPC é um tipo de benefício que permite que esse um vulnerável seja cuidado por outro, o que, sempre, envolverá uma ou duas pessoas do núcleo familiar. O sofrimento do pobre é, frequentemente, socializado com os familiares, especialmente as mulheres. Não estamos a tratar de um resfriado. Cegueira, Doença de Chagas, Doença de Huntington, Doença de Parkinson, Epilepsia, Esclerose, Mal de Alzheimer, HIV, Transtorno do Espectro Autista, entre tantas outras doenças que atingem brasileiros vulneráveis, estão entre aquelas atendidas pelo BPC.
- A mudança no Salário Mínimo representará, no quadro de todos os cortes, 33,58% de economia. Mas quem, novamente, ganha um Salário Mínimo? Aqui o cinismo converteu-se em sadismo. A política gloriosa de ganho real do Salário Mínimo, decantada dos discursos políticos do Presidente Lula, será destruída. Haverá impacto na Previdência Social, no mercado de trabalho formal e, igualmente, no poder de compra dos mais vulneráveis. É o presente para aqueles que reivindicam o fim da escala 6X1. O economista Pedro Rossi, em uma publicação nas redes sociais, interrogou: “Se a regra do salário-mínimo do pacote valesse desde 2003? Hoje, o mínimo seria em torno de 25% por centro menor, ou seja, inferior a R$ 1000.” Há outro aspecto, ainda, a pontuar. O Salário Mínimo tem uma repercussão regional particular, já que é mais importante, considerando a participação geral desse grupo de renda, assim como da inflação setorial, nas regiões mais pobres. Pensem na hipótese de diferença de 1.5 pontos entre um PIB de 4 pontos e o limite de 2.5 pontos de crescimento imposto pelo Novo Arcabouço Fiscal. Isso significaria R$ 21,18 mensais no bolso no trabalhador e da pensionista do INSS. Muito pouco. Agora multiplique R$ 21,18 por 13 e chegará ao valor de R$ 283,4 ao ano. Continua pouco. Menos da metade de um Robert Mondavi (Cabernet Sauvignon) que alimenta perfuma os jantares do Ministro com os representantes da Faria Lima. Essa é, no entanto, em milhares de localidades desse país, a diferença entre cozinhar com gás ou com carvão vegetal. A diferença, por alguns meses, entre o almoço sem mistura e o almoço com mistura. Diferença que o Lula, de 2003, sabia bem.
Não podemos observar, em silêncio, a erosão da estrutura idealizada na Constituição de 1988. A cumplicidade do campo progressista cobrará, no futuro próximo, um amargo preço. Lembro, agora, das personagens do genial livro Ninguém escreve ao Coronel, de Gabriel García Márques. O enredo é conhecido. O velho empobrecido Coronel espera, com resiliência, uma carta informando sobre a concessão de sua pensão, assim como a vitória de seu galo nas rinhas. Sua mulher, descrente com a espera e a miséria, deseja colocar o galo na panela. Penso em tudo isso enquanto observo os argumentos daqueles que defendem as políticas de austeridade. Imagino que a única pessoa a escrever para Fernando Haddad, depois que a desgraça tomar conta do país, seja Cesar Calejon. Dirá, na carta, que o Ministro se apresse em explicar os cortes para o miserável velho - diga para o velho que espere, um pouco mais, a concessão de seu BPC. “Isso posto”, continuará - para acalmar sua úlcera, diga ao velho que atenda o desejo da velha esposa doente e sacrifique seu amado e magro galo. Não é difícil imaginar que a resposta do velho ao Ministro Fernando Haddad e ao seu fiel escudeiro, Cesar Calejon, terá o mesmo teor da resposta ofertada para sua amada esposa – VÁ À MERDA!
Referências
Brasil. Constituição da República de 1988. In: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 08/11/2023.
Brasil. Gov-Fazenda Perguntas e respostas sobre o Novo Arcabouço Fiscal. In: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2023/abril/confira-o-perguntas-e-respostas-sobre-o-novo-arcabouco-fiscal
Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei Complementar número 200, de 30 de agosto de 2023. In: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp200.htm. Acesso em 08/11/2023.
DATA-SUS. Tablenet. Vários dados municipais. In:https://datasus.saude.gov.br/informacoes-de-saude-tabnet. Acesso em 08/11/2024.
Governo Federal. Brasil Eficiente. País Justo. Ministério da Fazenda. Brasília, 2024.
IBGE. SIDRA. Vários dados demográficos. In: https://sidra.ibge.gov.br/home/ipca/brasil. Acesso em 08/11/2024.
INEP. Censo Escolar 2023. In: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados. Acesso em 08/11/2023.
Marques, Gabriel Garcia. Ninguém escreve ao Coronel. São Paulo, Record, 1968.
MDS. Relatório. In: https://aplicacoes.cidadania.gov.br/ri/pbfcad/relatorio-completo.html. Acesso em 08/11/2024.
Tadeu Alencar Arrais
Observatório do Estado Social Brasileiro | Professor Titular da UFG
E-mail: tadeuarraisufg@gmail.com
Ficha bibliográfica:
ARRAIS, Tadeu Alencar. Ninguém, exceto Cesar Calejon, escreverá ao Ministro Haddad. Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, vol. 14, n.16, 15 de dezembro de 2024. [ISSN 2238-5525].