
A GEOGRAFIA NO FILME A VILA (2004): CONCEITOS E TEMAS PARA REFLEXÃO
Jean Carlos Ribeiro de Lima
Os conceitos existem para ajudar o homem a compreender o mundo em que vive. E mais: um conceito é também uma visão de mundo, marcado por sua característica mais proeminente, a universalidade (Aristóteles, 2024). No âmbito da Geografia – e do conhecimento científico num todo –, os conceitos são fundamentais para determinar o caminho pelo qual certa visão de mundo seguirá. Os conceitos de Território, Espaço, Região, Paisagem e Lugar, quando tomados por categorias de análise, fornecem subsídios interpretativos do mundo e colocam o homem no centro da abordagem geográfica. Dessa forma, o presente texto objetiva refletir sobre conceitos-chave e temas da Geografia a partir do filme A Vila (2004), do diretor indiano Manoj Nelliyattu Shyamalan.
O texto não busca enfatizar, de forma descritiva, eventos e cenas específicas do filme, tampouco se trata de uma crítica especializada (nem mesmo amadora). O objetivo é uma abordagem geral do filme destinada à relação que o enredo possui com alguns conceitos e temas da Geografia.
A princípio, o filme revela uma primeira impressão sobre a categoria Espaço. De imediato, têm-se que o espaço se constitui a partir do sujeito e de suas relações. É possível ainda supor que o espaço seja um componente associado às apropriações, sentidos e criações humanas que constroem modos e estilos de vida específicos. Tal suposição ocorre por entendermos que, a partir do filme e de suas primeiras impressões, a opção por um determinado modo de viver possa representar a consciência e a ação coletiva como fundamentos para constituição de um espaço propriamente dito.
Em dado momento do filme, a ideia de espaço parece vincular-se à noção de “espaço social” de Henri Lefebvre (2006). Ou seja, quando os moradores da vila entram – mesmo que indiretamente – em choque com o mundo “de fora”, com os valores da globalização que parece implacável. A partir desse “choque”, produz-se o espaço social, fruto da conjunção de temporalidades e espacialidades distintas, mas onde predomina o capital em última instância.
De modo geral, seríamos, a priori, tentados a analisar o filme tão somente a partir do ponto de vista do espaço geográfico, da localização e do estreito envolvimento com o meio natural. Todavia, as apreensões do filme com base no conceito de Espaço revelam as contingências expressas pelo grupo social que decide reinventar-se em novas bases socioespaciais. Significa que o espaço é constantemente afetado por transformações sociais, sendo, pois, inteligível por meio da sociedade (Santos, 1977 citado por Corrêa, 2012).
Comparativamente, o geógrafo tem como referência de análise dos fatos que o cercam a perspectiva do espaço, enquanto o historiador a perspectiva do tempo. E no filme isso fica muito claro. O espaço não é um res cogitans (objeto da razão) dissociado da res extensa (matéria) dos moradores da vila. É sobretudo um instante que marca os acontecimentos daquilo que Walter Benjamin (1987) chamou de um passado saturado de “agoras”. Em outras palavras, o espaço contém (e retém) a historicidade das ações humanas.
Em outro momento da trama, o conceito de Região emerge, podendo, eventualmente, ser apreendido como meio físico (natural) e biológico – uma vez que se trata de uma região isolada; uma floresta protegida por lei –, mas, também, ao conjunto de práticas e ações humanas estritamente determinadas (ação do sujeito). Trata-se de uma leitura assente na conformação de gêneros de vida, resultantes da interferência do trabalho humano, muito especialmente por conta da opção de isolamento, que define as práticas e as relações sociais ali existentes (Gomes, 2012). Nesse sentido, os próprios hábitos e costumes criados na vila (espaço geográfico) a partir do isolamento, como, por exemplo, a prática das refeições coletivas e das regras de segurança (não era permitido, por exemplo, a entrada na floresta) reconstroem processos e trajetórias de vida, o que circunscreve aquela “região”.
A questão pertinente que o filme levanta sobre a Região enquanto categoria de análise da Geografia, é aquela que Vidal de La Blache (1985, p. 175) chamou de “combinação de fenômenos físicos, naturais e humanos”. Isto é, nessa perspectiva, não se pode mais dizer que existe uma Geografia Geral (dita dos fenômenos físicos, climáticos etc.) e que seria, portanto, “verdadeiramente” científica, em oposição a uma Geografia das Regiões (das especificidades do lugar, da região etc.). No filme, a tessitura das relações sociais da comunidade ali edificada decorre dessa percepção: a Região não é apenas um meio físico, natural, mas, antes de tudo, um microcosmo de vivências e experiências de vida sedimentadas a partir do tempo e do espaço.
Outra leitura possível é a que envolve a perspectiva da Paisagem e a alimentação simbólica das ingerências inseridas no enredo do filme. Significa que a escolha do isolamento demonstra opção por uma paisagem que é material (o que vejo e o que sinto), mas que também é condicionante da experiência vivida daquele grupo. Isso significa que a paisagem ali (na trama) é construída, pois revela a estrutura social (a hegemonia do grupo dos anciãos da vila) e as representações simbólicas (os monstros que habitam na floresta; as cores vermelha e amarela, associadas, respectivamente, àqueles que não se pode mencionar os nomes e, alusiva à proteção contra os monstros) (Luchiari, 2001).
Se a paisagem revelada no filme está em construção, o Lugar e o Território também são envolvidos numa (re)significação prática. No que tange ao Lugar, vê-se uma essência, um sentido e uma resistência em sua elaboração. No contexto da produção cinematográfica, a vila não é apenas um lugar físico, natural. Pelas opções do grupo, o lugar ali subtendido nas cenas é apreendido por meio das visões de mundo, constituídas, sobretudo, pela experiência cotidiana e pelo vivido (Relph, 2014). As práticas e as ações ali inseridas, também apresentam sentidos, pois se trata da capacidade de apreciação de diferentes lugares (que no caso dos habitantes da vila se encontra limitado pelo isolamento).
No caso da resistência, a construção de todo o imaginário em torno da essencialidade da vila é reveladora de uma obstinação ao que antes era a experiência de vida no mundo globalizado. A perda de entes queridos e a indignação com os padrões impostos pela sociedade globalizada gerou um sentimento de resistência frente ao ambiente “isolado”, como forma de, e, ao mesmo tempo, enfrentamento e proteção.
Como consequência ao processo de construção do lugar e de uma identidade, percebe-se a emergência de um território determinado por relações de poder na representação do que é a vila. A dimensão da política e da ideologia também são fundamentais na formação de um determinado território, em que se parte de uma ação prática do grupo social. Talvez aqui se possa ir além das possibilidades de compreensão acerca das relações de poder no cotidiano dos moradores da vila, pois toda convivência e interação que ali se opera é permeada por tal dimensão. Isso porque, conforme Saquet (2013), as relações de poder são vividas, sentidas, percebidas e diferentemente compreendidas. Assim, as relações de poder estão no contexto familiar, na aldeia, nas comunidades tradicionais, nas escolas, no trabalho, na igreja, na festa, enfim, nas relações e interações sociais da vida cotidiana.
A teia de relações construídas entre os habitantes da vila revela as formas de exercício do poder. Não se trata apenas de um poder situado no plano dos limites territoriais com a floresta (que por sinal é quebrado por circunstâncias extemporâneas) ou na hegemonia dos anciãos, mas, sim, na própria convivência cotidiana, nas relações familistas e de parentesco, nos arranjos conjugais e nos sentimentos de afeto reprimidos.
Nesse sentido, talvez possamos identificar territorialidades subjacentes ao contexto de vivência da vila, ou seja, conexões entre dimensão territorial e identitária (noção ontológica). Conforme alude Yi-Fu Tuan (1983), o Espaço e o Lugar devem ser pensados e analisados a partir dos sentimentos e das ideias de um povo na torrente da experiência. A autoafirmação do grupo que reside na vila determina características e traços de identidade que deve ser preservada como símbolo de pertencimento e união comunitária. A todo momento, o sentimento de autonomia e resistência identitária criado pelos habitantes daquele espaço os condicionam a permanecer obstinados ao seu modo de vida particular, distante de quaisquer outros valores e preceitos.
Existe na trama do filme uma relação da história narrada e uma relação local-global. Como já mencionamos, a própria opção pelo isolamento se constitui por meio de uma recusa do global ante os modos singelos de vida no local. A negação, neste caso, se configura não na diluição do global, mas, sim, na sua (re)invenção. Milton Santos (1985) foi certeiro ao dizer que é a sociedade que dá vida ao espaço. Sendo considerado como totalidade, a análise do espaço como categoria geográfica deve levar em conta as partes, que levam ao todo, e assim por diante. A leitura mais correta sobre a reflexão que o filme promove sobre a relação local-global talvez seja esta: a de que um não se separa do outro e estão, pois, em simbiose.
Em boa medida, o filme explora outros elementos para além dos citados conceitos geográficos. Consegue propor uma reflexão histórica, antropológica (que aliás, é muito bem trabalhada ao longo do filme) e sociológica. Histórica porque evidencia temporalidades distintas e tradições da comunidade que são transmitidas às gerações futuras. Antropológica porque mostra que as tradições ensejam modos de vida, por meio de rituais, mitos e lendas que sedimentam a coesão identitária do grupo. Sociológica por revelar um universo em que as relações sociais são definidas por fatores como vizinhança, família e tradição.
É um filme denso, com um enredo muito interessante e atuações competentes. Fica a indicação aos leitores.
Referências
A Vila. Direção: M. Night Shyamalan Roteiro: M. Night Shyamalan. EUA, 2004. 108min.
ARISTÓTELES. Metafísica. Rio de Janeiro: Vozes, 2024. 320 p.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e pólitica: ensaios sobre a literatura e história da cultura. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. 257 p. (Obras escolhidas). Sergio Paulo Rouanet. Disponível em: https://psicanalisepolitica.wordpress.com/wp-content/uploads/2014/10/obras-escolhidas-vol-1-magia-e-tc3a9cnica-arte-e-polc3adtica.pdf. Acesso em: 09 ago. 2025.
BLACHE, Vidal de La. As características próprias da geografia. In: CHRISTOFOLETTI, A. (Org.). Perspectivas da geografia, 2. ed. São Paulo: Difel, 1985. p. 37-48.
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GOMES, Paulo Cesar da Costa. Espaço, um conceito-chave da Geografia. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo Cesar da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato (Orgs). Geografia: conceitos e temas. 15ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000). Primeira versão: início - fev. 2006
LUCHIARI, Maria Tereza Duarte Paes. A (re)significação da paisagem no período contemporâneo. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Orgs). Paisagem, Imaginário e Espaço. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2001.
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SAQUET, Marcos Aurélio. Abordagens e concepções de território. 3ª. ed. São Paulo: Outras expressões, 2013.
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Jean Carlos Ribeiro de Lima
Professor efetivo da Rede Pública Estadual de Ensino (SEDUC/GO).
Graduado em História e Mestre em Ciências Sociais e Humanidades (UEG).
Doutorando em Geografia pelo Instituto de Estudos Socioambientais (IESA/UFG).
E-mail: lima.ribeiro@discente.ufg.br
Ficha bibliográfica:
LIMA, Jean Carlos Ribeiro de. A Geografia no Filme A Vila (2004): conceitos e temas para reflexão. Territorial – Caderno Eletrônico de Textos, vol. 15, n.17, 18 de agosto de 2025. [ISSN 2238-5525].
Categorias: territorial